sexta-feira, 2 de abril de 2010

TEMPO INCERTO

Os homens têm complicado tanto o mecanismo da vida que já ninguém tem certeza de nada: para se fazer alguma coisa é preciso aliar a um impulso de aventura grandes sombras de dúvida. Não se acredita mais nem na existência de gente honesta; e os bons têm medo de exercitarem sua bondade, para não serem tratados de hipócritas ou de ingênuos.
Chegamos a um ponto em que a virtude é ridícula e os mais vis sentimentos se mascaram de grandiosidade, simpatia, benevolência. A observação do presente leva-nos até a descer dos exemplos do passado: os varões ilustres de outras eras terão sido realmente ilustres? Ou a História nos está contando as coisas ao contrário, pagando com dinheiros dos testamentos a opinião dos escribas?
Se prestarmos atenção ao que nos dizem sobre as coisas que nós mesmos presenciamos - ou temos que aceitar a mentira como a arte mais desenvolvida do nosso tempo, ou desconfiaremos de nosso próprio testemunho, e acabamos no hospício!
Pois assim é meus senhores! Prestai atenção às coisas que vos contam, em família, na rua, nos cafés, em várias letras de fôrma, e dizei-me se não estão incertos os tempos e se não devemos todos andar de pulga atrás da orelha!
A minha esperança estava no fim do mundo, com anjos descendo do céu; anjos suaves e anjos terríveis; os suaves para conduzirem os que se sentarão à direita de Deus, e os terríveis para os que se dirigem ao lado oposto. Mas até o fim do mundo falhou; até os profetas se enganam, a menos que as rezas dos justos tenham podido adiar a catástrofe que, afinal, seria também uma apoteose. E assim continuaremos a quebrar a cabeça com estes enigmas cotidianos.
No tempo de Molière, quando um criado dava para pensar, atrapalhava tudo. Mas agora, além dos criados, pensam os patrões, as patroas, os amigos e inimigos de uns e de outros e todo o resto da massa humana. E não só pensam, como também pensam que pensam! E além de pensarem que pensam, pensam que tem razão! E cada um é o detentor exclusivo da razão!
Pois de tal abundância de razão é que se faz a loucura. os pedestres pensam que devem andar pelo meio da rua. Os motoristas pensam que devem pôr os seus veículos nas calçadas. Até ps bondes, que mereciam a minha confiança, deram para sair dos trilhos. Os analfabetos, que deviam aprender, ensinam! Os ladrões vestem-se de policiais, e saem por aí a prender os inocentes! Os revólveres, que eram considerados armas perigosas, e para os quais se olhava a distância, como quem contempla a Revolução Francesa ou a Guerra do Paraguai - pois os revólveres andam agora em todos os bolsos, como troco miúdo. E a vocação das pessoas, hoje em dia, não é para o diálogo com ou sem palavras, mas para balas de diversos calibres. Perto disso, a carestia da vida é um ramo de flores. O que anda mesmo caro é a alma. E o Demônio passeia pelo mundo, glorioso e impune".


Autora: Cecilia Meireles
Editora: Record
Assunto: Literatura Brasileira-Contos E Cronicas
 Edição: 26
Número de Páginas: 128



Nestas páginas, Cecília Meireles vê o mundo como ele é, e corrige-o para como deveria ser. Não o corrige pela violência, mas pela poesia.

17 comentários:

Anônimo disse...

bem profundo!

Ange Rocha S. Abramov disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ange Rocha S. Abramov disse...

Obrigada, Veloso. Fico feliz em saber que minha escrita tem agradado. Ah, adoro quadrinhos :)

Abraços.

Unknown disse...

A grande dama da literatura brasileira, muito oportuno.
Parabéns.

Emilene Lopes disse...

Obrigado pela visita =)
Volte sempre!
Estou te seguindo tá?!
Bjs
Mila

Madukaah -ω- disse...

Olá, Veloso.
Que bom que gostou do meu blog. O seu é muito bom também.
Realmente, seu posts são bem profundos.

Espero que ele faça mais sucesso ainda!!

Muito obrigada!

Dan Teshuqah disse...

Olá, Veloso. Li o texto de Cecília. Os tempos realmente mudaram. Vivemos num tempo de crises das certezas. Mas, considero que, talvez, estejamos num período de transição necessária... Onde isso vai dar, ainda não sabemos, talvez só mesmo no último badalar de uma meia-noite que é ainda um mero vislumbre. Obrigado por seguir por me visitar. Ah, estou seguindo seu blog. Que por sinal, tem aquilo que eu admiro: a capacidade de dialogar com a diversidade de linguagens.

PAPEL E BORRÃO disse...

OBRIGADA VELOSO POR VISITAR MEU HUMILDE BLOGGER! APAREÇA SEMPRE O SEU BLOGGER E MUITO INTERESSANTE!

Anônimo disse...

Um feliz Páscoa para ti.
Deus abençõe vc e sua família.
Muita paz,muita luz e muita sabedoria.
Um beijo borrado de chocolate.
Beijokas.

Mulher Colorada disse...

Obrigado pela visita! Gostei do seu Blog! Felicidades! Mulher Colorada

Anônimo disse...

Eu li a sua postagem,perfeita.
Engraçado, eu adoro Cecília Meireles mas eu desconhecia esse texto.
Todos nós temos o segredo para q as coisas fluam positivamente mas para q facilitar se podemos complicar? É a visão q eu possuo hoje infelizmente.O quadro mudou e os papéis inverteram-se.
Se vc é gentil,vc se oferece,se vc ñ é,é relapsa!!!
Complicado né meu amigo.
Parabéns pela postagem.
beijokas.

Jordanna Duarte disse...

Obrigada pela visita ao Integrados e Dispersos! Abraços!!

Anônimo disse...

Hoje estou mais orgulhoso
De mim, algo em mim não rui.
Afinal, há pouco fui
Aprovado por Veloso.

Abraço Tigelírico.

Divagações, pão e circo disse...

Em tempos de Big Brother e de liberdade vigiada, devemos desconfiar até da nossa sombra e de verdades antes absolutas e inquestionáveis.

NUMEROLOGIA E PROSPERIDADE disse...

Bom dia.
Belíssimo texto, Cecília é Cecília. Adorei.
Outra coisa, adorei o bonequinho do seu perfil.
FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... deseja uma boa semana para você.
Beijo grande.

Sulla Mino disse...

te sigo agora. Obrigada pela visita, volte sempre que desejar. Belo Blog, eu adoro quadrinhos...resolvi comentar neste Conto...Sou fã de Cecília...Bjks,

Anônimo disse...

muito interessante