sábado, 20 de março de 2010

NOSSO SENHOR DO BOMFIM NÃO É SÃO BENEDITO

Como são engraçados os caminhos do nosso pensamento. Às vezes, um fato, um sabor ou um aroma, nos fazem buscar na memória bons ou maus momentos, histórias que marcaram nossa vida. A notícia sobre a prisão de sete funcionários da Igreja do Bonfim, em Salvador, que há dez anos furtavam o dinheiro que os fiéis doavam à igreja, me fez lembrar de um dos curiosos "causos" que meu pai contava nas noites de racionamento de luz, lá pelos anos de 1960. Os mais novos acham que apagão é coisa recente, mas os balzaquianos sabem que essa história vem de longe. Nessa época, morávamos numa casa de dois quartos, numa vila no Grajaú, na Zona Norte do Rio. Na entrada da sala tinha, como sempre, um piano alugado e um violão, comprado de segunda mão. Meu pai era autodidata e, como costumam dizer, tocava de ouvido tanto o piano, quanto o violão. Com a porta da casa aberta, sentávamos na varanda: eu e minhas irmãs no murinho, minha mãe na poltrona, meu irmão nos degraus. Era hora de ouvir o tão repetido conserto do papai, já que o repertório era bem restrito e, se não me engano, o racionamento acontecia duas ou três vezes por semana.
Quando cansava de tocar, papai encostava no portal e, como fazia com as músicas, repetia algumas histórias lá de Santa Rita, "pra mó di fazê o tempo passá mais depressa". Às vezes, uma história nova fazia diminuir a torcida pela volta da luz, que devolvia às famílias a adolescente mais famosa do momento: a TV.
Uma dessas histórias era sobre um homem desempregado que, depois de arrumar um dinheirinho com o compadre, começou a imaginar um jeito de multiplicar o capital. Jogador inveterado, Totoquinha - era esse o apelido do herege - teve uma idéia dos diabos. Guardou o dinheiro no bolso e partiu pros lados da igreja. Espreita daqui, espreita dali, quando viu que o terreno estava limpo, entrou na casa de Deus e foi direto ter com São Benedito. Jogador contumaz, Totoquinha conhecia bem as regras do carteado. Do Truco, então, nem se fala! Depois de se certificar de que não havia ninguém por perto, o danado enfia a mão no bolso e "casa" o empréstimo com os donativos depositados aos pés da imagem. Coloca as cartas pra ele e pro santo, dá uma "chorada" e dobra a aposta. "Truco São Benedito"! Como era de se esperar, o Santo não responde. E aí, Totoquinha arrecada as apostas e sai com a alma lavada e o bolso recheado.
Depois dessa estréia, Totoquinha jogou Truco com São Benedito durante muitos anos. Na sua ética, ele não era desonesto; o Santo é que não sabia jogar. São Benedito foi condescendente com o malandro caipira. Papai contava que Totoquinha morreu de velhice e virou folclore na cidade.
Lembrando dessa história, imagino se o Santo teria sido tão paciente, se tivesse que aturar sete espertalhões a lhe surrupiar os donativos durante dez anos. Acho que o bando queria mesmo era enrolar Nosso Senhor do Bonfim, quem sabe numa mesa de Buraco de Oito. Eles não sabiam, nem eu, que Nosso Senhor do Bonfim não é São Benedito. Azar deles!


Yone de Carvalho Abelaira
Rio, 30/09/04
http://www.yoneabelaira.multiply.com/



Obrigado a amiga Yone, vai ser a homenagem ao
Dia do Contador de História

Um comentário:

Yone de Carvalho Abelaira disse...

Prezado Veloso, estou muitíssimo agradecida a você por dar visibilidade ao meu texto.
Como grande contador de "causos" que você é, está de parabéns pelas jóias que você cria para enriquecer o seu baú. Fiquei muito orgulhosa de ocupar um pedacinho desse espaço tão interessante e democrático.
Um grande abraço, Yone.